quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Explicação do Fato Parte 2 (Torquato Neto)




 II
  
Também tenho uma noite em mim tão escura
que nela me confundo e paro
e em adágio cantabile pronuncio
as palavras da nênia ao meu defunto,
perdido nele, o ar sombrio.

(Me reconheço nele e me apavoro)

Me reconheço nele,
não os olhos cerrados, a boca falando cheia,
as mãos cruzadas em definitivo estado, se enxergando,
mas um calor de cegueira que se exala dele
e pronto: ele sou eu,
peixe boi devolvido à praia, morto,
exposto à vigilância dos passantes.

Ali me enxergo, à força no caixão do mundo
sem arabescos e sem flores.

Tenho muito medo.

Mas acordo e a máquina me engole.

E sou apenas um homem caminhando
e não encontro em minha vestimenta
bolsos para esconder as mãos, armas, que, mesmo frágeis,
me ameaçam.

Como não ter medo?

Uma noite escura sai de mim e vem descer aqui
sobre esta noite maior e sem fantasmas.

Como não morrer de medo se esta noite é fera
e dentro dela eu também sou fera e me confundo nela e
ainda insisto?

Não é viável.

Nem eu mesmo sou viável, e como não? Não sou.

O que é viável não existe, passou há muito tempo
e eram manhãs e tardes e manhãs com sol e chuva
e eu menino.

Eram manhãs e tardes e manhãs sem pernas
que escorriam em tardes e manhãs sem pernas
e eu sentado num tanque absurdamente posto no meio da rua,
menino sentado sem a preocupação da ida.

E era todo dia.

Havia sol
e eu o sabia
sol: era de dia.

Havia uma alegria
do tamanho do mundo
e era dia no mundo.

Havia uma rua
(debaixo dum dia)
e um tanque.


Mas agora é noite até no sol.

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