O clarão veio.Carlos acordou, esfregou os olhos,virou a
cabeça para o lado. Tinha dormido de bruços, ajeitou-se sobre o colchão, entre
os lençóis úmidos de suor. O pesadelo de hoje tinha sido melhor que o de ontem.
Não sabia quem era. Onde estava? Virou-se, com certa dificuldade, sentou e
afastou a roupa de cama molhada.
Abriu os olhos. A luz o impedia de usar sua
visão, seus olhos já eram naturalmente apertados.Porquê acordar?
Porque sair da cama todos os dias? Porque andava sempre do mesmo jeito, meio
grogue, até o banheiro comunitário da cabeça de porco onde morava, e precisava
molhar o rosto com a água putamente gelada para poder se reconhecer diante do
espelho gasto e sujo?
Todo dia igual. Um copo de leite com água para render, talvez alguns biscoitos de água e sal que não pareciam ter o tal sal na composição, insípidos. Depois o cigarro, raramente não amarrotado, normalmente ausente. Alguns minutos para ler o jornal do dia anterior. A única diferença era a máquina de escrever, sob a escrivaninha velha, com adesivos de correspondência colados no tampo direito. Alguns dias escrevia nela, com ela, outros não. A maioria. Sentia-se bem ao desempenhar o ato, ver as coisas vindo à vida. “Coming to life” como leu um dia desses.
E o dia de hoje, sempre depois do de
ontem. Parecia que carregava o mundo nas costas. Quem poderia falar de
liberdade? Talvez ninguém. Ser livre demandaria muita responsabilidade. “Quem
pensa por si mesmo é livre, e ser livre é coisa muito séria”, disse alguém na
rádio, em meio a uma canção perdida qualquer, que ninguém devia dar ouvidos.
Liberdade, que piada. Sentou-se em frente à maquina, acendeu o cigarro
amarrotado como de costume. E as mãos começaram a trabalhar.
Sonhara com uma
escada rolante. Na verdade duas, emparelhadas, num lugar qualquer indescritível
em termos de localização. Uma delas sobe, outra desce. Há outras pessoas nelas,
mas elas não são importantes, não prendem sua atenção.
Luzes mornas amareladas.Tudo tranquilo.Escolhe a escada de descida, não sabe
bem porquê, mas parece que tem que descer.
De repente tudo muda, mas o lugar é o
mesmo, nota que as pessoas ao seu redor não têm rosto, nome, parecem feitas de
borracha, pelo movimento que fazem. Parece um tipo de
epilepsia. São artificiais, mas não são. Tudo que ao redor, inclusive
as mesmas pessoas, verte-se em tons de cinza. As cores mornas esfriam, e não só
elas, mas o clima torna-se gélido, contundente, desesperador. E a descida
parece durar uma eternidade – mas é rápida, certeira. Só há uma luz, onde
termina a escada. Branca como o esquecimento e o vazio, que é tudo - e nada.
Sente a garganta secar, contrair,
apertar tanto que não pode mais respirar. Tenta virar-se e subir por ali mesmo
– pela descida, mas as pernas não obedecem, malditas pernas, nunca funcionam
quando se quer, ficam moles, ocas, sem sensação e simplesmente não recebem as
ordens de seu sistema-mais-que-nervoso. Começa a gritar, gritar tão alto que
todas as pessoas sem rosto viram, de modo repressor e agressivo, e se voltam em
sua direção.
A luz branca fica mais perto, cada vez
mais, e as pessoas sem identidade também. Sente o sangue grosso e morno
contrastando com a temperatura ambiente escorrer livremente pelo nariz boca e
pescoço. E sua voz se vai.
Mãos por todo o
lado, mais frias que o resto, tateando, afagando antes do ataque. E o clarão.
Terminou o cigarro, amassando contra o
cinzeiro ao lado da máquina.De algum modo, dava
pra sobreviver mais um dia.
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