quinta-feira, 14 de agosto de 2014

O Dia Depois de Ontem [AUTORAL]



O clarão veio.Carlos acordou, esfregou os olhos,virou a cabeça para o lado. Tinha dormido de bruços, ajeitou-se sobre o colchão, entre os lençóis úmidos de suor. O pesadelo de hoje tinha sido melhor que o de ontem. Não sabia quem era. Onde estava? Virou-se, com certa dificuldade, sentou e afastou a roupa de cama molhada.

Abriu os olhos. A luz o impedia de usar sua visão, seus olhos já eram naturalmente apertados.Porquê acordar? Porque sair da cama todos os dias? Porque andava sempre do mesmo jeito, meio grogue, até o banheiro comunitário da cabeça de porco onde morava, e precisava molhar o rosto com a água putamente gelada para poder se reconhecer diante do espelho gasto e sujo?

Todo dia igual. Um copo de leite com água para render, talvez alguns biscoitos de água e sal que não pareciam ter o tal sal na composição, insípidos. Depois o cigarro, raramente não amarrotado, normalmente ausente. Alguns minutos para ler o jornal do dia anterior. A única diferença era a máquina de escrever, sob a escrivaninha velha, com adesivos de correspondência colados no tampo direito. Alguns dias escrevia nela, com ela, outros não. A maioria. Sentia-se bem ao desempenhar o ato, ver as coisas vindo à vida. “Coming to life” como leu um dia desses.

E o dia de hoje, sempre depois do de ontem. Parecia que carregava o mundo nas costas. Quem poderia falar de liberdade? Talvez ninguém. Ser livre demandaria muita responsabilidade. “Quem pensa por si mesmo é livre, e ser livre é coisa muito séria”, disse alguém na rádio, em meio a uma canção perdida qualquer, que ninguém devia dar ouvidos. Liberdade, que piada. Sentou-se em frente à maquina, acendeu o cigarro amarrotado como de costume. E as mãos começaram a trabalhar.

Sonhara com uma escada rolante. Na verdade duas, emparelhadas, num lugar qualquer indescritível em termos de localização. Uma delas sobe, outra desce. Há outras pessoas nelas, mas elas não são importantes, não prendem sua atenção.

Luzes mornas amareladas.Tudo tranquilo.Escolhe a escada de descida, não sabe bem porquê, mas parece que tem que descer.

De repente tudo muda, mas o lugar é o mesmo, nota que as pessoas ao seu redor não têm rosto, nome, parecem feitas de borracha, pelo movimento que fazem. Parece um tipo de epilepsia. São artificiais, mas não são. Tudo que ao redor, inclusive as mesmas pessoas, verte-se em tons de cinza. As cores mornas esfriam, e não só elas, mas o clima torna-se gélido, contundente, desesperador. E a descida parece durar uma eternidade – mas é rápida, certeira. Só há uma luz, onde termina a escada. Branca como o esquecimento e o vazio, que é tudo - e nada.

Sente a garganta secar, contrair, apertar tanto que não pode mais respirar. Tenta virar-se e subir por ali mesmo – pela descida, mas as pernas não obedecem, malditas pernas, nunca funcionam quando se quer, ficam moles, ocas, sem sensação e simplesmente não recebem as ordens de seu sistema-mais-que-nervoso. Começa a gritar, gritar tão alto que todas as pessoas sem rosto viram, de modo repressor e agressivo, e se voltam em sua direção.

A luz branca fica mais perto, cada vez mais, e as pessoas sem identidade também. Sente o sangue grosso e morno contrastando com a temperatura ambiente escorrer livremente pelo nariz boca e pescoço. E sua voz se vai.
Mãos por todo o lado, mais frias que o resto, tateando, afagando antes do ataque. E o clarão.

Terminou o cigarro, amassando contra o cinzeiro ao lado da máquina.De algum modo, dava pra sobreviver mais um dia.

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